A filha do dentista.

Uma tarde dessas, ainda em São Paulo, a pulseira de couro do meu relógio arrebentou. Pensei em procurar um sapateiro que pudesse costurar, muito mais simples e barato do que trocar por uma nova. Lembrei da sapataria São José, na rua que eu morei quando era menina. Será que eles ainda existiam ? Estavam lá. Na mesma portinha. Os dois, já bisavôs, como me contaram quando me identifiquei.

” Ah, você morava ali, é a filha do dentista. “ Sim, sou eu. A filha do dentista !  E ficamos recordando a rua daquela época, ainda de terra, do ferro velho, do Zézinho barbeiro, da lojinha e salão de beleza das irmãs japonesas Marcia e Margarida. Muita coisa mudou. Inclusive o nome da rua . Tomada pela nostalgia andei até o portão do sobradinho onde eu passei boa parte da minha infância. A casa me pareceu tão pequena, e eu achava tão grande ! Tinha cinco anos quando nos mudamos para lá. Minhas irmãs, meus pais e eu.  Tia Maria Helena, nossa vizinha, chegou quase que na mesma semana. E tinha dois filhos. Minha mãe e ela passavam muitas tardes na porta de casa conversando, enquanto nós brincavamos de tudo que uma criança sem video game e internet pode brincar : escolinha, pega pega, barra manteiga, esconde esconde, corda, bicicleta…nas tardes quentes, a gente tomava banho de esguicho no quintal, escorregando de um lado pro outro dando impulsos com os pés contra a parede. A coxa ficava toda ralada, mas quem se importa ?

Tinha um pequeno jardim na frente  com um cactus. Uma vez eu passei a faca em todos os espinhos pra não furar mais minha bola de plástico. O cactus morreu, coitado.  E eu levei a maior bronca do meu pai. Mas quem deve ter ficado mais triste foi a Margarida, dona da lojinha da frente, que parou de vender as bolas pra mim. Aos sábados, minha mãe atravessava a rua e ia ao salão da Marcia pintar as unhas e enrolar o cabelo.  Às vezes ela me levava junto e deixava eu pintar também. E saíamos do salão as duas de lenço na cabeça pra esconder os bobes. Os grampos enterrados no couro cabeludo doíam pra caramba. Mas eu nem ligava. O prazer de soltar tudo e me encher de cachos pulando a cada passo que eu dava compensava a dor.

Quando minhas  primas de Santos passavam férias em casa, a folia era grande !  E quando os avós chegavam, quanta alegria !  O ritmo e o cardápio mudavam . A Vó Yolanda, de origem italiana, organizava a geladeira pra depois encher de antipastos que ela fazia. A Vó Guilhermina, de origem portuguesa, nos brindava com o trivial mais gostoso que eu já comi : bife no alho e frango de panela. Hummmmm…deu fome !

E quando algum de nós fazia aniversário ?  Lá estavam minha mãe e tia Maria Helena na cozinha assando pãozinho de salsicha e enrolando docinhos que nós tentavamos roubar da mesa a todo momento enquanto corriamos pelo quintal e enchiamos as paredes de marcas de pé ao pular o muro de uma casa pra outra. Muito mais divertido e rápido do que dar toda a volta e entrar e sair pela porta.

Meu pai chegava tarde. Pilotava um opalão amarelo ouro com o teto preto . Um baita carro naquela época. Era só abrir a porta de casa e a demanda por atenção era grande. O pobre, que devia estar exausto, ainda ouvia nossas estórias, assistia aos teatrinhos e  as canções que ensaiavamos só pra apresentar pra ele. Minha mãe, cansada, via tudo de novo. E logo nos mandavam ir dormir. Hoje dá pra entender. Energia de criança parece que não tem fim !

Um dia a tia Maria Helena anunciou que todos iam se mudar pra Brasilia. Foi uma tristeza só. Ainda me lembro o endereço deles :

SQS 110 bloco A apto 601 – 72000 – Brasilia – DF. Escrevi tantas cartas que nunca mais me esqueci. E foi o primeiro lugar que eu fui conhecer quando cheguei por aqui. Que raio será essa tal de SQS ??

Um vez resolvi fugir de casa. Levei minhas bonecas, muita roupa de frio e 2 cruzeiros. Saí toda agasalhada pelas ruas do bairro procurando um lugar limpo e protegido pra dormir. No meio do caminho parei numa banca de revistas e gastei meus 2 cruzeiros num jogo de bolinhas. Ganhei um lindo abridor de latas !  Sem ter encontrado uma só calçada limpa, morrendo de calor e com fome, voltamos pra casa : a mala, o abridor de latas e eu. Minha mãe abriu a porta e mandou eu ir almoçar. Naquela noite dormi mais feliz. E nunca mais pensei em fugir !

Alguns anos depois nos mudamos de lá. A família aumentou e o sobradinho ficou pequeno. Tia Maria Helena voltou a morar em São Paulo. Foi um tempo bom. Foi uma época muito, muito boa. Época que a gente comia gelatina no potinho, usava shampoo e creme rinse colorama, mascava chiclé ping pong , comprava um tijolo de sorvete e dormia cedo . Época que a única preocupação era

 ‘ do que eu vou brincar amanhã ? “

Campo Belo. Não é um nome de bairro simpático pra se morar ?

Sugestão de filme: ‘ O Regresso para Bountiful”- um dos filmes mais tocantes que eu já vi sobre uma senhora que foge de casa só para rever a cidade que morou na infância com seus pais.

bountiful

10 thoughts on “A filha do dentista.

  1. Nossa , que nostalgia ! …. Depois que li esse texto fechei meus olhos e viajei. Lembra quando brincávamos de madrasta boa e madrasta ruim com a Cris ? Eu sempre chorava quando a madrasta boa ia embora !!…

  2. Stella , acabo de descobrir que fomos vizinhas, eu retornei a residir Campo Belo, há 02 anos, conheço a Márcia, e a Margarida que faleceu muito jovem no final do ano passado, eu morei e voltei a morar na Vieira de Morais, quase esquina aonde elas tinha a lojinha e o salão, quem sabe nos conhecíamos… rs
    Eu caminho diariamente aqui no bairro e faço alguns registros do bairro, nos links você poderá rever um pouco co Campo Belo, que agora é cheio de prédio, bem diferente da época que você relata.


    beijinho

      • Obrigada, seus comentários o enriquecerão.
        Conheci o seu blog, através de uma amiga queridíssima , Leny Cuoco de Carvalho, cantava no coral da sua mãe, ela enviou-me a homenagem que você fez à sua mãe aqui, li os outros posts e “virei” sua fã. (rs)

  3. Adorei seu post! Muito obrigado mesmo, estou construindo um site sobre dentistas e seu artigo ajudou bastante, levantei informacoes sobre tratamentos dentarios, a importancia
    da higiene bucal entre outros fatores. Vou te adicionar aos favoritos.

Deixe um comentário